domingo, 30 de janeiro de 2011

Parvos que somos



Houve lágrimas nos olhos, ontem no Coliseu de Lisboa. E não foi com o "Clandestino" ou o "Passou por mim e sorriu". Foi com esta que aí está.
Ontem, assisti a um fenómeno com que nunca me tinha deparado. O público inteiro aplaudiu a letra de uma canção. A cada verso, os aplausos ressoavam cada vez com mais força. Não foi o single, não foi aquela tão animada, foi esta canção que aí está.
Os Deolinda resolveram abandonar metáforas e recursos poéticos. Nesta letra, não há segundos sentidos. E, por isso, eu também vou deixar de lado a estética da escrita para dizer o que penso.

A minha geração é, provavelmente, a mais bem qualificada de sempre em Portugal. Nós estudámos, e estudámos mesmo, para podermos ser aquilo que queremos ser. Não é capricho. É querer fazer bem feito, é não querer ir para o mercado de trabalho à toa, é querer chegar às empresas mais bem preparado. As empresas deviam agradecer isto: haver gente nova, de ideias frescas, pronta para arregaçar as mangas a trabalhar. Esta gente nova devia ser compensada e não castigada.
Esta gente nova gosta de viajar, ir para os copos e tem altas ambições. "Querem logo ser chefes, deviam saber o que é lavar escadas". Lavarei escadas se isso for necessário para alimentar filhos, mas não, não quero saber o que é lavar escadas. Porque eu gosto é de fazer outras coisas e, por isso mesmo, é que fui estudar essas outras coisas. Uma licenciatura não é uma tarefa assim tão fácil de concluir.
Quando saímos da faculdade, depois de 4 anos de aprendizagem em cima, o que nos espera são estágios "curriculares". Ora, como o próprio nome indica, um estágio CURRICULAR faz parte do currículo da faculdade e tem de ser feito em conjunto com o estabelecimento de ensino. Fazer um estágio depois de curso feito, sem que a faculdade o exija, e não ser remunerado, não é uma coisa "curricular". Como nos avisava constantemente o professor de Deontologia, trabalhar sem receber tem um nome: é escravidão. E, como dizem os Deolinda, estamos num país onde "para ser escravo é preciso estudar". Um estágio, mesmo que profissional e remunerado, é um momento de formação, é para aprender. Por isso, uma empresa que abra estágios porque precisa de mão de obra, está a agir de má fé. Muitas vezes, até exigem uma data de conhecimentos e disponibilidades. Nós, com os conhecimentos, oferecemos a nossa disponibilidade. E o pânico é tal que nem pensamos naquilo que ganhamos de volta. Uma vez vi um anúncio de uma revista online regional de um sítio qualquer por trás do sol posto a pedir "estagiários não-remunerados" (sim, já chegámos a esta falta de vergonha). E eu pensei: mas que raio vou eu aprender numa revista online regional de onde Judas perdeu as botas? O que ganho em troca? Nada.
Depois da fase dos estágios, lá conseguimos um primeiro trabalhinho pago. Pago como? A recibos verdes, obviamente. Após um primeiro ano de isenção de impostos, começamos então a saga de dar uma quantia absurda ao estado. São 160euros para a segurança social. Mesmo que só se ganhe 300euros. Como um recibo verde é um "trabalhador independente", não há cá ordenados mínimos. Nem há subsídios de férias. Nem de Natal. Nem décimo-terceiro mês. Nem baixa. Nem coisa nenhuma. E porquê toda esta falta de direitos? Porque, segundo a lei, também não temos muitos deveres.
No mundo real, isto é uma mentira bem transparente. Um recibo verde não deve ter chefes, horários, locais de trabalho. O recibo verde é para o trabalhador independente, que toma conta de si. Mas o que acontece é que estamos todos a passar recibos verdes e a responder a chefes, que nos exigem presença diária no local de trabalho e cumprimento de horários. Isto é ilegal. E estamos todos coniventes. Foi-nos dada a possibilidade de denunciar a empresa. Até nos perdoam a dívida à segurança social! Caramba, e se nós temos provas! O recibo passado com a mesma quantia para a mesma empresa há meses e meses. Os emails com a divisão de horários. Os emails com as exigências. Mas e se os denunciarmos? Contaram-me de uma rapariga que denunciou a Visão. Ganhou. A Visão pagou uma multa e a rapariga nunca mais pôs os pés na Edimpresa. Não temos proteção. Ou temos um novo emprego à nossa espera (o que, com esta taxa de desemprego, não é coisa provável) ou a única vítima de um processo legal somos nós mesmos. Quem se lixa, como toda a gente sabe, é o mexilhão.

Tenho uma amiga que trabalha na redação dum grande portal de notícias. Foi a melhor aluna da faculdade do curso de jornalismo. É a melhor jornalista que conheço. Trabalha há 4 anos a recibos verdes. Não tem tempo para ganhar dinheiro noutros lados, os seus dias (incluindo fins-de-semana) são dedicados àquele trabalho. Ela e os colegas pediram que a sua situação fosse regularizada: um contrato já seria obrigatório há muito tempo. Não lhes foi concedido o cumprimento da lei, que eles não tinham sequer de ir pedinchar. Com o novo código contributivo para a Segurança Social, foram então pedir mais 50euros para cada um (não soa a esmola?). Disseram-lhes que não, que não havia dinheiro, que até teriam de mandar gente embora. Dias depois, foram coagidos a ir à festa de Natal da empresa (que é das maiores do país). Tinham de mostrar que eram uma equipa, que também faziam parte, apesar de se sentirem outsiders. No meio da festa, ali estavam eles, sentadinhos, a ouvir o patrão dizer que o fecho de um negócio ia permitir dar um prémio de 1200euros a cada empregado. Palminhas, sorrisos, e o silêncio de centenas de pessoas. É que os recibos verdes não são empregados da empresa, por isso, nada de prémio para eles.

Tenho outra amiga que trabalha na mesma produtora há mais de três anos. Recibo verde. Ganha menos agora do que ao início. Com o fim do ano de isenção, passou a ter de tirar uma fatia para a segurança social. Depois, outra fatia para o IVA. Este, que devia ser COBRADO à empresa, é-lhe retirado do seu ordenado. Com o pânico do que aí vem de segurança social, foi pedir que revissem a sua situação (já que tinham sido feitos contratos a colegas seus). A chefe ainda teve a lata de fazer o papel de dama ofendida, ela que elogiava tanto o seu trabalho e tanto apostava nela. Ela sentadinha no seu gabinete com candeeiros de 100euros que nunca foram acesos.

Pois é, meus senhores. Elogios não pagam alugueres de casa. Temos quase 30 e queremos mesmo sair da casa dos pais. Queremos seguir a nossa vida. Queremos casar e ter filhos e perpetuar a espécie (será que vale a pena?).
Não nos venham dizer que não há dinheiro. Depois de o programa onde trabalho ter posto a RTP2 a aparecer nos gráficos de audiências, a RTP cortou o nosso orçamento em 12%. Qual é a primeira coisa que se faz? Cortar os ordenados em 12%, claro. A RTP não tem dinheiro, dizem. Não tem? E os milhares que se pagam a pessoas como o José Rodrigues dos Santos, que maior parte das vezes nem deve pode ir fazer o seu trabalho porque tem de estar a escrever remakes do Dan Brown? E o iPad que o meu professor de TV na pós-graduação, trabalhador da RTP, ia exibir para a aula? A afirmar, ainda por cima, que aquilo era revolucionário, porque as pessoas iam usá-los no autocarro. Meu senhor, as pessoas que andam de autocarro não podem comprar iPads! E a contar como a RTP organizou o encontro mundial de broadcasters todo cheio de hors d'oeuvres? Há dinheiro, sim! Normalmente não vai é para quem mais trabalha.

Aqueles aplausos no concerto fizeram-me perceber com clareza de que estamos todos fartos. Estamos mesmo fartos. Até queremos lutar. Mas lutar contra quem? Contra o governo que não fiscaliza as empresas e não protege os seus trabalhadores? E vamos deitá-lo abaixo para ir para lá um mais à direita que ainda vai fazer pior? Contra as empresas chupistas que se apoiam no pânico em que estamos para pôr a trabalhar gente em terríveis condições e ainda ter a atitude de quem está a fazer um grande favor? Contra os mercados internacionais no geral? Contra os especuladores da bolsa, que dão cabo disto tudo sem sequer lidarem com dinheiro real? Contra os nossos pais que nos fizeram acreditar que, se estudássemos muito, íamos ter uma boa vida? Lutamos contra quem?

O que andamos a fazer é a fugir. Vamos embora daqui, porque aqui ninguém nos dá valor. Muitas vezes, sabemos mais que o conjunto geriátrico que possui as empresas, mas temos de andar a lamber-lhes as botas. Fora daqui ainda há sítios onde as empresas sabem que sem trabalhadores, não funcionam. Que precisam deles. Que, para os terem, têm de lhes pagar. Que valorizam o mérito, que estão atentas e premeiam quem faz bem.

Só faria efeito se nos juntássemos todos e todos recusássemos trabalhar em certas condições. Mas isso não existe. Se eu recusar, há 20 atrás que aceitam e ainda perguntam quanto é preciso pagar. Porque estamos em pânico. Porque a luta não nos dá dinheiro com que sair da casa dos pais, com que conhecer o mundo, com que comprar livros e música e filmes.

E é por medo que vamos continuar todos aqui parados, a tentar descobrir onde podemos ir buscar mais uns euros, a pedir licença aos pais para ficar ali só mais um bocadinho, só para ver se no mês que vem ainda tenho trabalho. Vamos continuar todos aqui, precários, a ser parvos. Só à espera do próximo avião.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Amazona pó-de-arroz - ADENDA

Só não sou é suficientemente gira para lá chegar depressa. Ou suficientemente... prá frentex.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Todo o sentimento




Chico é génio.
Chico é música que muda o rumo do dia.
Chico é poesia que ensina a viver.
É livro.
É chinelo e sapato fino. É cachaça e champanhe.
Chico é coração na cabeça e mente no peito.
Chico é samba e amor, é roda viva, é construção, é cálice, não se cale nunca.
É carioca, carioca, carioca.
Chico é tanto mar.
Chico é pai.
É também mulher.
É meu caro amigo, é meu amor.
É instituição que tratamos por tu.
Chico não passa como a música não passa.
Chico é para todos.
Chico é João, é Maria, é Terezinha, é Geni, é malandro.
Chico não tem artigo.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Amazona pó-de-arroz


Tinha um cartão plastificado ao pescoço que dizia: Marta Paes [sim, alguém decidiu que o meu apelido havia de ter ortografia nobre] Lopes - Guionista. Caía muito pouco delicadamente por cima do casaco grosso e do cachecol; estava muito frio nesse dia. Eu fungava, mas juro que andava toda contente. Foi um daqueles programas que jamais veria em casa, mas que me deu muito gozo fazer. Escrever. Foi a primeira vez que apareci como Guionista na ficha técnica, ao lado do P., guionista talentoso e de sucesso da televisão portuguesa, o orgulho da sua amiga. Saltitei por dentro o dia todo, com o também meu guião na mão, a dar indicações aos apresentadores. À noite, o P. chegou. Apresentei-o aos dois amorosos condutores de programa improvisados: "este é o outro guionista". Eu disse "o outro". Mas a verdade é que, a partir daí, qualquer dúvida que tinham, era ao P. que perguntavam. De repente, vi-me a precisar de impôr a minha presença. Comecei a reparar também que as pessoas me pediam água, perguntavam se podiam ter autógrafos, se podiam passar por ali. Vi-me a obrigada a responder a verdade: "não sei, isso não é comigo, tem de pedir ali". Eu não sou assistente de produção. Podia ser (ou se calhar não podia, porque me faltam qualidades necessárias, como ser organizada), mas não sou. E eu, orgulhosa do meu dístico de guionista (que não é um trabalho melhor nem pior, é só aquele que eu quero), percebi que a primeira coisa que se pensa quando se olha para uma miúda não é que ela faz trabalho intelectual.

Tenho vários problemas. Sou mulher. Tenho cara de miúda. Sou uma mulher-miúda que tem a lata de pôr baton, usar saias curtas, ter pose de elegante e ainda ler uns livros e saber pensar pela sua cabeça. As mulheres que têm cargos mais altos no meio televisivo parecem-me todas semelhantes: cara de cigarro, calças de ganga, voz grossa, dizem muitas asneiras. Estereotipando a coisa, comportam-se como homens. Sei que a consciência de muitos homens e mulheres actualmente não vê qualquer problema em que haja nomes femininos nos cargos intelectuais e nos de chefia. Mas o inconsciente... o inconsciente ainda diz que se está ali uma miúda gira, deve ser para distribuir cafés.

Este é o meu primeiro discurso feminista. Quotas para mulheres na Assembleia, votar em mulheres nos reality-shows porque são mulheres são coisas que me revoltam. Ser mulher não é uma característica de personalidade. Quero chegar lá pelo meu mérito. Têm é de me deixar. Sempre fui a favor da igualdade de direitos e deveres entre os dois sexos, mas gosto de mulheres delicadas e homens cavalheiros. Aquele movimento feminista dos anos 30 diz-me pouco: usar vestidos que não mostram as curvas não é a defesa da mulher; é a defesa de que uma mulher pode ser como um homem. Eu não quero ser como um homem. Quero ser como uma mulher, sabendo que posso ser vaidosa e inteligente ao mesmo tempo. Não vou vestir calças de ganga, fumar e dizer asneiras para lá chegar. Agora, todos os dias, olho-me ao espelho e sei que não há gestos inocentes. Pinto os lábios, ponho rímel nos olhos e um livro debaixo do braço. Esse é o meu grito de guerra.

sábado, 4 de dezembro de 2010

O frio não é tão frio assim

Estiveste bem esta noite. As músicas novas são de ouvir em repeat e estás a cantar cada vez melhor. Só torço um pouco o nariz quando improvisas demasiado. Sei que é difícil conter a voz que te sai no momento, mas porquê alterar as melodias que fizeste tão belas? Por outro lado, é isso que te faz parecer tão humano em cima do palco. Parecer. Lição de vida: nunca confundir o artista com a sua arte.

Não tenho saudades tuas. Tenho saudades daquele bocadinho fugaz que tivemos. Não direi, como já disse de outro, que tenho pena pelo que poderíamos ter sido, porque, sendo eu quem sou e sendo tu quem és, acho que não poderíamos ter sido.

Há razões para gostar do Inverno. É que, no frio de uma avenida lisboeta percorrida a pé à noite, a melancolia chega mesmo a ser bonita.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Intervalo




Em televisão, existe para cumprir compromissos publicitários e assim pagar os ordenados a toda a gente. É sabido que são os programas que servem os anúncios e não vice-versa (se alguém não sabia, surpresa!). Mas não é só isso. Os intervalos são úteis também para respirar fundo, desanuviar, esticar as pernas, rodar o pescoço e até pensar naquilo que se viu.

Parar.




É assim connosco. Não falo de inércia. Parar não é "ficar parado", aquilo de que falava o Sérgio Godinho quando dizia que preferia o poço da morte a tal sorte. É que por vezes a sensação é a de que fazemos tanta coisa que o cérebro se torna inactivo. Ou, nova tentativa, agora é que me vou fazer entender, a cabeça perde-se em ideias, em textos, em papéis, em horários, em amigos, em amores e esquece-se de nós. Da vida. Daí a necessidade de intervalo. É preciso parar para pensar. Deixar cair a névoa de tralha que nos tolda e descobrir o real. Como diz o povo, que sempre soube explicar-se melhor que os poetas, olhar com olhos de ver.
Deparei-me com um intervalo no meu trabalho. Mais uma vez, dois meses e tal sem rotina, sem obrigações e tanta coisa para fazer.
Coincidentemente, um intervalo amoroso. Nem estou apaixonada nem ninguém anda a tentar que eu fique; não quero recuperar paixões antigas ou reutilizá-las (ecológico, mas tão pouco saudável); não me perco em domingos deprimidos nem em noites devassas.
Tem sido um intervalo aqui no Ovo, eu sei. É que só sei escrever sobre o que sinto e o que sinto tem sido profundo demais para um espaço tão público.
É um intervalo de mim também. Estou quase a matar a depressão em que me vi presa. O horizonte que vejo agora não é escuro nem claro: é o verdadeiro, é aquele que lá está. E é cada dia mais nítido.

O melhor do intervalo é que depois vem a segunda parte. E essa é aquela dos momentos mais emocionantes, das aventuras mais perigosas, do "agora é que é" e, claro, do final feliz. É aqui que me afasto da televisão. É que não é para aí que caminha a minha segunda parte. O meu "the end" é antes um começo feliz. E depois? Depois, cá estarei para contar a história.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Fool me once, shame on you. Fool me twice, shame on me.

Quarto de casal. Sentada na cama, Clara vasculha a caixa de jóias da Mãe. Mãe está de pé e vai observando as escolhas da filha.

CLARA: Gosto deste solitário.

MÃE: Então leva esse.

CLARA: É melhor não. Depois parece que estou noiva.

MÃE: Então, isso é bom!

CLARA: Não, Mãe. Não posso andar por aí com ar de comprometida.

MÃE: Ai filha, que medo que tens de não encontrares ninguém. Vai ser agora no curso, quando voltares à faculdade.

CLARA (com olhar irónico): Um artista, um maluquinho do cinema?

Pausa dramática.

MÃE (com expressão desesperançada): Ah... Pois...